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GENTE LUMINOSA

Não há no Rio, ou no Brasil, estabelecimento similar ao Amarelinho que possa mencionar, a partir de 1930, um número tão valioso de frequentadores e fatos envolvidos com episódios marcantes na História do Brasil e do Mundo, entre eles a Semana de Arte Moderna, o início da Era Vargas, a luta pela igualdade racial, a Guerra Civil Espanhola, os movimentos nacionalistas no Brasil, a 2ª Guerra Mundial, além de outros que se constituem em fontes de pesquisa para historiadores, conforme os textos que se seguem:

 

SAUDADES  DE  CARLOS  SCLIAR

 

   Oscar Niemeyer, em 2000, assim se  se expressou sobre Carlos Scliar:    

 

   "Scliar é um querido amigo. Um companheiro dos velhos tempos do Café Amarelinho, do PCB, da luta política que sempre nos comoveu. E ele, como eu – seguindo os acontecimentos sem recuos, sem temores, consciente de que a miséria nos cerca e que ao lado dela, dos nossos irmãos mais pobres – devemos caminhar. Esse é o lado humano do nosso camarada. O outro, que o ocupou também inteiramente, é o de sua carreira, artista plástico, de pintor de talento, que hoje, passados tantos anos, é por todos admirado.

 

   É sempre bom falar dos amigos, e, quando se trata de um velho e querido companheiro como Carlos Scliar, é melhor ainda. Dizer como é importante este grande brasileiro, voltado para sua pintura a vida inteira, mantendo-a – tão vasta – dentro da unidade e no nível superior por todos procurados.
   E, principalmente, lembrar como se faz atuante e solidário diante desta miséria, deste mundo injusto em que vivemos.
Um abraço, meu amigo, um grande abraço".

 

A  DOCE   NOSTALGIA   DE   JOEL   SILVEIRA

 

   A realização, em São Paulo, da Semana de Arte Moderna e do congresso que fundou, no Rio, o Partido Comunista Brasileiro, foram dois acontecimentos, em 1922, cujos personagens acostumaram-se a criar no Amarelinho um ambiente propício ao debate democrático, acolhedor de todos os credos, ideologias e tendências. Buscava-se romper com o conservadorismo elitista, o servilismo à cultura estrangeira, e lutar por justiça social, incluindo a conquista dos direitos dos trabalhadores.

 

   Daí, o Amarelinho consolidava sua fama como viveiro de ativistas, e entre eles estava Joel Silveira (1918 - 2007), jornalista, escritor, correspondente de guerra junto à Força Expedicionária Brasileira, na Itália, uma corajosa escolha de Assis Chateaubriand, que contrariava o Departamento de Imprensa e Propaganda e o ministro da Guerra, Eurico Dutra, que o acusavam de "perigoso militante comunista". Mas, apesar dos "ventos contrários", Joel Silveira navegou sua vida num rumo dos mais brilhantes. Publicou mais de 40 livros e em 1998 ganhou o Prêmio Machado de Assis, o mais importante da Academia Brasileira de Letras. No livro Na Fogueira - Memórias, o luminoso escritor faz, no capítulo 17, estas carinhosas menções à Cinelândia e ao Amarelinho:

 

   "(...) Fomos a pé da Cinelândia até a pensão, e tudo era burburinho. Finda a sessão das seis, os cinemas despejavam ondas de pessoas, as mulheres tão elegantes, de saias plissadas que iam até a metade das pernas, na cabeça pequenos chapéus ou boinas de feltro que pendiam de um lado. Ao passarem deixavam uma onda de delicados e insinuantes odores, sopros de perfume, lufadas deles. Na esquina da Alcindo Guanabara, Luciano me apontou o café instalado no térreo de um prédio amarelo de dez andares. Em seu interior, todas as mesas estavam ocupadas por uma gente variada. (...) 

 

    - Este é o famoso Café Amarelinho, você já deve ter ouvido falar dele. (Tinha sim). Ponto de encontro de literatos e também quartel-general dos intelectuais comunas. O Álvaro Moreyra, que você tanto admira, é presença diária. Aposto que ele e sua mulher, Eugênia, estão lá dentro. Vamos dar uma espiada.

 

    Entramos no Amarelinho - e quantas vezes, no meio século seguinte, eu ali iria voltar? centenas, milhares? (...)"

 

   No capítulo 35, do referido livro, Joel Silveira recorda o jornal Dom Casmurro:

 

   "A fauna que povoava a redação do Dom Casmurro poderia ser dividida em duas espécies distintas: a dos residentes e a dos de passagem. Eu me incluía na primeira, juntamente com Danilo Bastos e Wilson Lousada. Éramos os meninos do Brício, como nos chamavam na José Olympio e no Café Amarelinho, este um reduto de Mário de Andrade e de sua corte de jovens literatos. Os de passagem eram numerosos – quem não passava por lá? Romancistas, poetas, ensaístas, contistas, gente já consagrada ou iniciantes, dava de tudo. Entre os mais assíduos estava Marques Rebelo, o contista de Oscarina e futuro romancista de A estrela sobe. Barulhento, riso sempre solto, sarcástico, ele chegava sempre com novidades (...)".

 

   Os meninos do Brício, referidos por Joel Silveira, eram jornalistas e escritores que atuavam no Dom Casmurro (1937 - 1943), órgão fundado por Brício de Abreu, literato e crítico musical, e Álvaro Moreyra, cronista e teatrólogo, com muito destaque na literatura brasileira, colaborador do Jornal de Letras, Revista da Semana, Diretrizes e outros periódicos. Em Paratodos, do qual foi diretor, fez publicar poemas de Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que se iniciavam na carreira literária.

 

   Nosso Álvaro Moreyra foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1959, na Cadeira 21, fundada por José do Patrocínio.

REVOADA  GERAL  PARA   O  AMARELINHO

 

   Em 1911 a Light construiu na Av. Rio Branco um majestoso hotel, em estilo parisiense, que se tornou um marco histórico da cidade. No térreo, estava a Galeria Cruzeiro com uma estação de bondes em forma de cruz para facilitar o trânsito dos passageiros; local com movimentados restaurantes, casas de chá, leiterias, bares e cafés. Tudo foi demolido em 1957 para construção do atual Edifício Avenida Central. Concorrendo com os estabelecimentos da Galeria Cruzeiro havia, nas proximidades, dois célebres cafés lembrados por JG de Araújo Jorge em seu famoso livro "No Mundo da Poesia" (1969):

 

   "O Café Belas-Artes foi realmente nossa 'academia' durante alguns anos. Na esquina seguinte, frente para a antiga Galeria Cruzeiro, era o Café Nice, ponto de reunião de cantores, músicos, compositores da velha- guarda    Eram dois mundos que não se misturavam.  Quando instalaram a Caixa Econômica no local do Belas-Artes, levantamos vôo e fomos pousar na Cinelândia. Iniciava-se a fase do  Café  Amarelinho. 

 

   O mesmo grupo do Belas-Artes estava agora acrescido de outros elementos, alguns mais velhos, de outras gerações. Era comum, nas cadeiras de palhinha, na calçada, encontrarmos Murilo Araújo, Álvaro Moreira, Mário de Andrade, (quando de passagem pelo Rio), Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Portinari, Graciliano Ramos, Jorge de Lima. Uma tarde fui apresentado a Julio Salusse, o poeta de Os Cisnes".

 

   José Guilherme de Araújo Jorge (1914-1987), nascido no Acre, veio para o Rio onde fez o curso secundário nos Colégios Anglo-Americano e Pedro II. Como literato, colaborou nos jornais "Correio da Manhã" e "A Nação", nas revistas "Carioca", "Vamos Ler" e outros órgãos da imprensa do Rio. Formado em Direito,  também destacou-se como professor de História e Literatura no Colégio Pedro II. Ativista político, socialista de raiz, foi eleito deputado federal em vários mandatos.

 

   Sua luminosa biografia inclui sucessos como locutor e redator de programas nas Rádios Nacional, Cruzeiro do Sul, Tupi e Eldorado. Festejado como o Poeta do Povo e da Mocidade, assim ele prossegue com suas reminiscências:

   "Jorge de Lima tinha consultório no mesmo edifício do café e era o médico dos escritores e artistas do Amarelinho. Hoje, depois de tantos anos, só lastimo não ter me aproximado do Jorge, participado mais de sua convivência. O grande poeta me pareceu sempre esquivo, silencioso, distante.

 

   No mesmo edifício ficava também a redação de 'Dom Casmurro', o jornal literário de Brício de Abreu. Quem desejar escrever a história dessa época terá que consultar as coleções de 'Dom Casmurro'. Lembro-me que, na ocasião, um nome novo se projetava, Joel Silveira, que acabara também de chegar do Norte, e que à maneira de Sergio Porto, depois lírico e satírico, tirava do dia-a-dia da vida da cidade a substância de suas crônicas".

"PROTOFONIA" DA ORQUESTRA SINFÔNICA BRASILEIRA

 

   Jorge de Lima (1895-1953), lembrado por JG, é outra glória da literatura brasileira, romancista e poeta de múltiplas facetas, médico dos mais conceituados, aplicador dos métodos de higienização urbanística, catedrático de Literatura, na Universidade do Brasil e na Pontifícia Universidade Católica. O final das transcrições das crônicas de JG tem variada e intensa luminosidade:

 

   "No Amarelinho, reuniam-se ao nosso grupo jovens músicos cheios de idealismo e de planos. Eleazar de Carvalho e José Siqueira são velhos amigos, com quem troquei muitas vezes idéias. Eu estivera na Alemanha, frequentara a Filarmônica de Berlim, então sob a regência de Furtwaengler, fora a Bayreuth, assistira a Wagner em seu teatro, e muitas vezes lhes sugeri a criação de nossa Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual Álvaro Ladeira, cronista de arte, outro amigo, foi secretário por muitos anos.

 

    Falar do Amarelinho é recordar nomes e amigos, poetas, romancistas, jornalistas, pintores, compositores, caricaturistas, cuja convivência, nessa época, enriqueceu de lembranças minha memória. Armando Pacheco, eram dois, o pintor e o jornalista; os Condés, Mendes, Alvarus, Wilson W. Rodrigues, D’Almeida Victor, Cursino Rapôso, Paulo Mac-Dowell, Nélio Reis, Nélson Ferreira, alguns desaparecidos, como Osório Borba, Augusto de Almeida Filho, Amadeu Amaral Júnior, Martins Castelo. Era a minha geração. Não ficou marcada  cronologicamente: de 35 ou de 40. Mas teve seu tempo, foi bem um prolongamento do que se poderia chamar a belle époque.

 

    Como poetas, apenas dois nos fixamos: eu e Vinicius de Morais. Os outros perderam-se na vida, e, distraídos da poesia, enveredaram por múltiplos atalhos. Que sejam felizes! "

A LUTA PELA IGUALDADE RACIAL

 

   O Amarelinho, ao longo de várias décadas, recebeu os integrantes da luta contra o racismo e em favor dos direitos dos negros na sociedade brasileira. Entre eles, o  incansável Abdias Nascimento, autor dos livros "Sortilégio", "Drama para Negros e Prólogo para Brancos", "O Negro Revoltado", além de outros. Eis alguns expressivos lances da sua movimentada biografia:

 

   "Nasce em Franca, SP, em 1914, o segundo filho de Dona Josina, a doceira da cidade, e Seu Bem-Bem, músico e sapateiro. Abdias cresce numa família coesa, carinhosa e organizada, porém pobre, e vai se diplomar em contabilidade pelo Atheneu Francano em 1929. Com 15 anos, alista-se no exército e vai morar na capital São Paulo. Na década dos 1930, engaja-se na Frente Negra Brasileira e luta contra a segregação racial em estabelecimentos comerciais da cidade.   Prossegue na luta contra o racismo organizando o Congresso Afro-Campineiro em 1938. Funda em 1944 o Teatro Experimental do Negro - TEN, entidade que patrocina a Convenção Nacional do Negro, em 1945-1946.

    A Convenção propõe à Assembléia Nacional Constituinte de 1946 a inclusão de políticas públicas para a população afro-descendente e um dispositivo constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-pátria. À frente do TEN, Abdias organiza o 1º Congresso do Negro Brasileiro em 1950. Militante do antigo PTB, após o golpe de 1964 participa desde o exílio na formação do PDT. Já no Brasil, lidera em 1981 a criação da Secretaria do Movimento Negro do PDT.

 

   Na qualidade de primeiro deputado federal afro-brasileiro a dedicar seu mandato à luta contra o racismo (1983-1987), apresenta projetos de lei definindo o racismo como crime e criando mecanismos de ação compensatória para construir a verdadeira igualdade para os negros na sociedade brasileira. Como senador da República (1991, 1996-1999), continua essa linha de atuação. O Governador Leonel Brizola o nomeia Secretário de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Estado do Rio de Janeiro (1991-1994). Mais tarde, é nomeado primeiro titular da Secretaria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos (1999-2000)".

 

   Abdias foi Professor Benemérito da Universidade do Estado de Nova York, distinguido também com diversos títulos outorgados por instituições públicas e privadas. Em 2006, criou o Dia da Consciência Negra, que se tornou uma data cívica no calendário nacional.

 

   Em torno do Teatro Experimental do Negro, há este significativo registro:

   "O TEN, cuja primeira sede foi montada no prédio da União Nacional dos Estudantes - UNE, na Praia do Flamengo, foi planejado em conjunto com diversos artistas e intelectuais. Aguinaldo Camargo, Wilson Tibério, Theodorico dos Santos, José Herbel e Rodrigues Alves participavam constantemente das discussões, que tinham como cenário o famoso Café Amarelinho, na Cinelândia. O objetivo do TEN não era apenas produzir peças, mas também usar o teatro como instrumento de luta para o desenvolvimento e o avanço da qualidade de vida da comunidade negra". 

A DRAMÁTICA TRAJETÓRIA DA

ALIANÇA NACIONAL LIBERTADORA - ANL

 

   Em 1929, com a queda da Bolsa de Nova York e a consequente crise que abalou a economia mundial, surgiram vários movimentos de resistência ao capitalismo, às distorções por ele provocadas. No Brasil, aos primeiros anos do governo Vargas, surgiu uma frente única que, além de condenar os desvios do poder econômico, combateria a ideologia nazi-fascista que, de forma avassaladora, alastrava-se na Alemanha, Itália e outros países.  A frente única, intitulada Aliança Nacional Libertadora - ANL, também repudiaria as tentativas de retorno das velhas oligarquias que tanto haviam comprometido as primeiras décadas da República (1889-1930).

 

   A ANL reunia intelectuais, militares, profissionais liberais, funcionários públicos, sociais-democratas, marxistas, trabalhadores e estudantes, além de ardorosos adeptos do tenentismo, o movimento que muito contribuiu para a derrocada dos "carcomidos", assim chamados os políticos acostumados às práticas e aos vícios responsáveis pelo atraso do Brasil.  A criação da ANL foi anunciada na Câmara Federal em janeiro de 1935, e em março ocorreu a solene instalação no teatro João Caetano.  Do seu programa constavam, como base, o exercício da plena democracia, a ajuda aos pequenos e médios empresários, a nacionalização das empresas estrangeiras, o combate aos latifúndios, aos trustes e monopólios, além do cancelamento unilateral da dívida externa.

 

   Um estudante de 19 anos, Carlos Lacerda, em inflamado discurso propôs Luís Carlos Prestes, "O Cavaleiro da Esperança", como presidente de honra da instituição.  Em abril, a União Feminina do Brasil, uma entusiasmada associação de mulheres anti-fascistas reuniu-se no Instituto de Educação e apresentou seu programa, inspirado na ANL.  Em várias capitais e cidades brasileiras realizaram-se manifestações de apoio à Aliança, mas em junho daquele ano (1935) Getúlio Vargas decretou seu fechamento, interditou a sede que se instalara num sobrado da Avenida Almirante Barroso, iniciando a repressão aos seus integrantes, intensificada após o levante de militares comunistas do 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha.  Milhares de prisões se sucederam ao longo de 1936-1937; entre os condenados estavam Luís Carlos Prestes e Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal.  O "tiro de misericórdia" na ANL foi o advento do Estado Novo, regime de força que durou de 10 de novembro de 1937 a 29 de outubro de 1945.

 

   Naquele período de repressão, censura e arbitrariedades, muitos adversários da ditadura fizeram do Café Amarelinho o ponto de encontro onde cultivavam a esperança e não deixavam morrer seus ideais de democracia e justiça social.  Entre eles estava o jovem Carlos Lacerda, um dos primeiros arautos da Aliança Nacional Libertadora, que viria a ser eleito em 1960 governador do Estado da Guanabara, empossado em 5 de dezembro daquele ano.

A ESPANHA REPUBLICANA DE MANUEL BANDEIRA

 

   Os últimos cinco anos da década de 1930 foram perigosamente dramáticos, tempos marcados por choques ideológicos, intolerâncias e imposição do poder pela força das armas, tornando-se as sementes maléficas dos conflitos bélicos que, nos anos seguintes, atingiriam todos os continentes.  Entre as paredes e mesas do Amarelinho, em meio à animação de artistas, músicos e compositores, muitos expoentes da cultura brasileira refletiam e debatiam sobre os temas essenciais da existência humana.

 

   Um desses cultores do saber, já notável por ser autor de obras literárias que o tornariam imortal, estendia sua mente para um país europeu que havia mergulhado na guerra civil.  Em 1931, os espanhóis, através de eleições livres, optaram pelo regime republicano, contrariando uma minoria formada por monarquistas, conservadores tradicionalistas, católicos convictos, além de simpatizantes da Alemanha, de Hitler, e Itália, de Mussolini. 

 

   A Espanha tornou-se o campo de ensaio para a aviação nazista, com seus mortíferos bombardeiros de mergulho, artilharia pesada, blindados e tropas de assalto.  Todo um aparato bélico que, em escala maior, iria caracterizar a blitzkrieg hitlerista nos três primeiros anos da 2ª Guerra Mundial.  Guernica, uma pequena cidade basca, foi impiedosamente arrasada pelos aviões alemães da sinistra Legião Condor em abril de 1937; genocídio retratado por Pablo Picasso através de uma tela a óleo (8 m x 3,5 m) hoje em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York; um misto de cubismo, semi-abstracionismo, com traços transtornados que expressam o horror pela bestialidade da guerra.

 

   Para resistir às poderosas forças que se uniram ao ditador Francisco Franco, os republicanos contavam com parcos recursos, entre eles a ajuda de milhares de voluntários precariamente armados, com pouco ou nenhum treinamento militar, vindos de diversos países, entre os quais França, Reino Unido, Polônia, Suíça, Iugoslávia, Grécia, Brasil, Estados Unidos, México, Argentina, além de anti-fascistas alemães e italianos.  Embora derrotados, os remanescentes dessas brigadas internacionais foram saudados pela ativista política Dolores Ibarruri, a célebre "La Pasionaria", com esta despedida: "Podem partir de cabeça erguida! Vocês são o exemplo heróico da democracia solidária e universal".

 

   Por sua vez, um entristecido Manuel Bandeira consolava-se junto aos companheiros do Café Amarelinho e, com a sensibilidade de ser professor de Literatura Hispano-Americana na Faculdade Nacional de Filosofia, também inspirado pelo seu gênio de poeta, fazia esta saudação solidária ao destroçado país ibérico: "Espanha no coração / No coração de Neruda, / No vosso e em meu coração. / Espanha da liberdade, / Não a Espanha da opressão / ... A Espanha de Franco, não! / Espanha republicana, / Noiva da revolução! / Espanha atual de Picasso, / De Casals, de Lorca / Irmão assassinado em Granada! / Espanha no coração".

 

   Além de Picasso, o poeta reverenciava o chileno Pablo Neruda (ativista de uma Espanha liberta do arbítrio), o violoncelista e regente Pablo Casals, e o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca, fuzilado em 1936.

APÓSTOLOS  DA  BRASILIDADE

 

   Foi Paulo da Silva Prado, um rico herdeiro da aristocracia cafeeira de São Paulo, quem se tornou ainda muito jovem o mecenas da arte brasileira, fazendo surgir o Movimento Modernista de 1922.  Abriam-se as portas para o talento de Manuel Bandeira, Lasar Segall, Vitor Brecheret, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Oswald e Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Di Cavalcanti, Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, Heitor Vila-Lobos, Tarsila do Amaral, Olívia Penteado, Patrícia Galvão (Pagu), Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raquel de Queirós, Heckel Tavares, Cecília Meireles, Afonso Schmidt e tantos outros astros e estrelas com intensa luminosidade onde sobressaíam cintilações em fortes tons verde e amarelo.

 

   Podiam, por vezes, divergir entre eles, mas convergiam totalmente nos postulados que Mário de Andrade soube definir:

 

   "A conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional".

 

   E o Amarelinho era o atraente ponto de encontro de tão vasta galáxia, literatos, poetas e artistas, do Rio, de São Paulo e de todo o Brasil.  O radialista e pesquisador Osmar Frazão registrou em seu apreciado programa "Histórias do Frazão", da Rádio Nacional, em 13 de dezembro de 2009, que Mário de Andrade quando vinha ao Rio buscava conversar com Waldemar Henrique, o célebre compositor da canção "Minha Terra", uma exaltação à brasilidade, e entre as mesas do Amarelinho falavam animadamente sobre nossa música, a impressionante diversificação dos ritmos regionais, a versatilidade dos músicos, a qualidade dos intérpretes e os novos caminhos das nossas artes plásticas, inspiradas em raízes genuinamente brasileiras.

 

   Outro personagem, frequente naquele cenário montado no incomparável palco da Cinelândia, também percebeu a real dimensão daqueles tempos de transição: Celso Kelly, professor do Instituto de Educação e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionou Literatura, História das Artes, Fundamentos Estéticos da Comunicação e Jornalismo Comparado, que presidiu entre outras instituições, a Associação Brasileira de Imprensa e a Associação dos Artistas Brasileiros; com olhos e ouvidos de quem, também, foi diretor do Teatro Municipal e do Departamento Nacional de Educação, sintonizou toda a brasilidade que ali se propagava.  Especialmente sobre o Movimento Modernista, cujos inúmeros atores principais estavam no círculo do seu convívio, Celso Kelly assim dissertou:

 

   "Temos vivido, neste século, uma larga faixa de surpresas. Nunca os ateliers de pintura e escultura estiveram tão revoltos, desinibidos de preconceitos, em busca de soluções novas, pródigas em número e em variações, como se o mundo - pelo menos nesse setor - estivesse a reinventar-se.  A fertilidade é tal que ninguém se fixa no achado, e tem logo a atenção solicitada por outra iniciativa, que já sofre a concorrência de terceiras e quartas soluções.  Dentro dessa oficina, sem a regência de espíritos catalisadores que tentem alguma unidade, tudo é permitido:  tem-se a impressão de que cada qual saca do seu buril ou do seu pincel, do seu pedaço de madeira ou ferro, ou de sua substância corante, e dá curso à imaginação; transporta-se ao estado criativo e, posto nessa condição mágica, realiza o que lhe vem ao espírito, espontâneo ou premeditado, no extremo da originalidade, como se respondesse ao dever de dar nova imagem a este mundo milenar".

 

DE CUSTÓDIO MESQUITA E MARIO LAGO

A GEORGES BERNANOS

 

 

   Erguida a partir da 2ª metade dos anos 1920, a Cinelândia não demorou a consolidar prestígio e tornar-se a "Broadway Brasileira", conforme o arrojado projeto do imigrante espanhol Francisco Serrador. Contudo, em meio às suas diversas atrações não se encontravam, de forma destacada, espetáculos musicais com o autêntico samba de morro. Daí, em 1936, Custódio Mesquita e Mario Lago compuseram "Sambista da Cinelândia", cuja letra é a seguinte:

Sambista desce o morro / Vem pra Cinelândia, vem sambar / A cidade já aceita o samba / E na Cinelândia / Só se vê gente a cantar /

Hoje está tudo tão mudado / E acabou-se a oposição / Escolas há por todo lado / De pandeiro e violão /

O morro já foi aclamado / E com um sucesso colossal / E o samba já foi proclamado / Sinfonia Nacional

 

   A letra diz: "acabou-se a oposição", um eufemismo, pois, na verdade, a "oposição" era uma brutal perseguição aos sambistas de morro, nas duas primeiras décadas do século 20, odiosa campanha (que também se fazia contra capoeiristas, praticantes de cultos afros, ou qualquer agrupamento de negros) promovida por poderosos chefes de polícia, entre eles Sampaio Ferraz (apelidado "cavanhaque de aço") e Aurelino Leal, que, absurdamente, tornaram-se nomes de ruas; o primeiro, no Estácio (berço de sambistas...) enquanto o segundo é placa de rua no Leme...

 

   Havia um outro troglodita, o tristemente célebre "Delegado Chico Palha", merecidamente execrado num samba dos compositores Tio Hélio e Nilton Campolino, gravado por Zeca Pagodinho. A letra narra os desmandos do desprezível personagem e revela seu triste fim, acabou sendo expulso da polícia, caiu na miséria e virou mendigo.

 

   Voltando à composição "Sambista da Cinelândia", no site www.historiasdofrazao.com.br podem ser obtidos detalhes sobre ela, conforme pesquisa do competentíssimo Osmar Frazão, de quem ganhei, recentemente, uma primorosa reprodução em CD daquela música, interpretada por Carmen Miranda.

 

  Em 1938, quando o samba já estava consagrado como "Sinfonia Nacional", e seus ferozes inimigos não passavam de tristes lembranças, chegava ao Brasil, aos 50 anos de idade, o jornalista e premiado escritor francês Georges Bernanos, famoso por diversas obras de repercussão internacional, Sous le soleil de Satan(Sob o sol de Satã); La Joie (A Alegria); La Grande peur des bienpensants (O Grande medo dos bem-pensantes); Journal d'un curé de campagne (Diário de um pároco de aldeia); Les Grands cimetières sous la lune (Os Grandes cemitérios sob a lua), este inspirado na Guerra Civil Espanhola, da qual participou como repórter.

 

   Combatente na 1ª Guerra, Bernanos antepunha-se ao nazi-fascismo e estava inconformado com a "política de apaziguamento" de franceses e britânicos diante dos avanços hitleristas na Europa. O escritor aqui chegou com mulher, seis filhos e um sobrinho, passando temporadas em cidades do interior do Rio e de Minas Gerais. Mas sua intelectualidade explodia com todo o vigor quando vinha ao Rio, cidade que ele dizia ser "prodigiosamente bela". Seu pouso predileto era na Cinelândia, e Ubiratan Machado, autor do livro "A literatura francesa durante a II Guerra Mundial", faz este registro:

 

   "Podia ser visto à tarde numa mesa do café Amarelinho, escrevendo. O burburinho da Cinelândia, o barulho do trânsito, os gritos dos garçons, nada o incomodava. Pelo contrário, tinha necessidade desse contato humano para se concentrar. E cultivava amigos queridos, como Jorge de Lima, Alceu Amoroso Lima, Virgílio de Melo Franco".

 

   Na mesma obra, o autor revela:

 

   "Com o seu 'jeito meio alçado de enorme pássaro de Deus' (como dizia Jorge de Lima), a sua presença insólita - como um meteoro caído de um universo paralelo - os seus arroubos de cólera, a sua aspereza de pedra, a sua loquacidade incansável (falava durante horas, em voz altíssima, sem deixar ninguém abrir a boca), Bernanos parecia mais um profeta bíblico, oferecendo o que se espera de todo profeta: violência de expressão, inquietação, a voz que clama contra o desconcerto do mundo".

 

   "O jovem, e igualmente colérico Carlos Lacerda, definiu-o como o 'magnificamente errado Georges Bernanos, um homem que não pode ensinar a ninguém o verdadeiro caminho, mas que certamente pode muito bem - e ensina ainda melhor - qual o caminho que se não deve tomar".

 

   Como se vê, na impressionante história do Amarelinho está a interlocução de dois gigantes do pensamento contemporâneo, a debater, com estrondos vulcânicos, os rumos da nossa conturbada humanidade. Bernanos voltou a França em 1946, onde morreu 2 anos depois. Ubiratan Machado, no seu livro, assegura:

 

   "Os sete anos no Brasil foram de produção intensa, durante os quais redigiu mais de 250 artigos para a imprensa, a maior parte publicada em português em O Jornal, traduzidos por Lúcia Miguel Pereira, e dezenas de panfletos, barulhentos como um tiro de canhão, para a BBC. Compôs três livros editados no Brasil - Lettre aux Anglais; Le Chemin de la Croix-des-Ames; La France contre les Robots".

 

   Em meio a uma Europa desmantelada, Georges Bernanos ainda chegou a lançar mais 4 livros, entre elesMonsieur Ouine, que começara a escrever em 1932. Durante sua permanência no Brasil, ele se fez permeável ao nosso jeito de ser e de viver, num novo mundo bastante promissor, com muita coisa a fazer, mas bem diferente de um velho mundo irremediavelmente acostumado a sangrentos e generalizados conflitos.

O POETA E DOIS DOS SEUS AMORES

 

   Nascido dentro de uma estirpe de literatos, primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, o pernambucano João Cabral de Melo Neto chegou ao Rio em 1940, aos 20 anos de idade, logo passando a conviver com o numeroso grupo de intelectuais frequentadores do Amarelinho. Em 1942, lançou o livroPedra do Sono, primeiro de uma trajetória literária que se aliou à carreira diplomática, iniciada em 1945 quando se tornou vice-cônsul do Brasil em Barcelona, onde fez fraterna amizade com Miró, escrevendo um ensaio sobre o célebre pintor espanhol, que ilustrou o texto com diversas reproduções de suas obras.

 

   Transferido em 1950 para o nosso Consulado Geral em Londres, é surpreendido, dois anos depois, com a ordem de regressar ao Brasil para responder a inquérito, sob a acusação de "atividades subversivas".  O mundo, naquela época, vivia sob o temor da "guerra fria" e certos setores em muitos países do Ocidente deixavam-se envolver pelo macartismo, a radical oposição ao comunismo, ou qualquer manifestação de esquerda, oposição liderada pelo senador norte-americano Joseph Mac Carty, um sujeito horroroso que infernizou a vida de muita gente, atormentando, principalmente, intelectuais, cineastas, astros e estrelas de Hollywood.

 

   Por aqui, enquanto rolava o inquérito sobre as supostas "atividades subversivas" do nosso João Cabral de Melo Neto, ele sofria a suspensão dos seus pagamentos pelo Itamaraty, apenas surgindo para garantir sua sobrevivência financeira e manutenção da família, já numerosa, a oportunidade de trabalhar como secretário do jornal "A Vanguarda", de Joel Silveira, outro cujos ideais socialistas eram tachados de "subversivos".

 

   Em 1954, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela sua reintegração à carreira diplomática, decisão festejada em homenagens prestadas pela intelectualidade brasileira, em vários Estados, e alegremente brindada nas mesas do Amarelinho.

 

   Retornando ao Itamaraty, segue para Barcelona, como cônsul adjunto, e em Sevilha, onde morou algum tempo, tem a missão de fazer pesquisas históricas no Arquivo das Índias.  Em 1958, está no Consulado Geral em Marselha, alternando, nos anos seguintes, missões em Genebra, Berna e, novamente, Barcelona.  Seja no Brasil ou em outros países, jamais deixou de produzir suas obras literárias, entre elas Os Três Mal Amados, O Cão sem Plumas, A Educação pela Pedra, Funeral de um Lavrador, componentes de um elenco de alto valor na cultura nacional, cuja inspiração maior está nos dramas sociais do Nordeste brasileiro e do povo espanhol, que muito marcaram sua fina sensibilidade de humanista.

 

   Morte e Vida Severina, peça escrita entre 1954 e 1955, é considerada a maior das suas obras, na qual está exposto o padecimento do retirante da seca.  Impressionante dramaturgia encenada por Sidney Siqueira na década de 1960 para o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, depois apresentada pela Companhia Paulo Autran, musicada por Chico Buarque de Holanda.  Morte e Vida Severina é considerado "o texto teatral brasileiro moderno de mais puro teor literário e de mais requintada beleza poética".

 

   Em maio de 1969, nosso poeta tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras, na Cadeira nº 6, sucedendo a Assis Chateaubriand.  Viveu 79 anos, despedindo-se do palco terreno em 1999, mas sem ver, como sempre desejava, dois dos seus amores voltarem aos tempos de grandes conquistas:  o América F. C., de Pernambuco, e o América F. C. do Rio.  Do primeiro, sempre recordava a conquista em 1944 do título de Campeão Pernambucano.  Um timaço no qual jogavam o admirável goleiro Leça e dois zagueiros difíceis de serem vencidos, Deusdedith e Lucas.  Do segundo, o América do Rio, mantinha viva na lembrança as esfuziantes exibições de um quinteto de atacantes-bailarinos, Natalino, Maneco (o "Saci de Irajá"), Dimas, Ranulfo e Jorginho, craques que alegraram o futebol brasileiro, atenuando a tristeza causada pela derrota diante do Uruguai, em 1950.  Quando o América conquistou o título de campeão em 1960, viveu período de enlevo, no futebol e na literatura, pois naquele ano publicava em Lisboa seu livroQuaderna.

 

   Nosso literato foi um apreciador da seção "Futebol Pitoresco", de João Antero de Carvalho, que ao longo de quase vinte anos (1968 - 1987) foi apresentada aos domingos no jornal "O Dia".  Os textos e as caricaturas, especialmente quando enfocavam o América, atiçavam o interesse do poeta, mantendo acesas suas esperanças da volta do clube da Rua Campos Sales aos dias de glória.  No 3º e último livro de autógrafos colecionados por Antero (jurista, jornalista e desportista) está a declaração lavrada em 1984 por João Cabral de Melo Neto sobre o América:  "É o meu clube de toda a vida".  A afirmação está na derradeira das páginas com numerosos autógrafos e pensamentos de celebridades do Brasil e do mundo, iniciados em 1932 com um desenho de Raul Pederneiras (professor da Escola Nacional de Belas-Artes e jornalista), além de registros assinados por Afrânio Peixoto (médico, romancista, membro da Academia Brasileira de Letras) e Olegário Mariano (diplomata, poeta, também imortal da ABL).

AVÔ E NETO EM ROLANÇAS NA CINELÂNDIA

 

   Nascido em 1911 na Rua do Rezende 150, batizado quando já morava na Rua do Senado, Mario Lago passou a infância flutuando alegremente no então chamado Bairro de Santo Antonio (Lavradio, Inválidos, Riachuelo etc.).  O tempo foi passando, o garoto crescia e pelas mãos do avô veio a conhecer outras áreas da cidade.  Esse avô, de nome Croccia, era imigrante italiano, nascido num vilarejo da região de Lucânia, ex-músico de pequena orquestra de bordo.  Dele, o neto, em seu livro "Na Rolança do Tempo", guarda esta gostosa recordação:

 

   "Já o conheci um sacudido sessentão, ostentando linda e alegórica barba branca, que lhe emprestava certo ar pirandeliano e o mantinha preso diante do espelho um mínimo de meia hora por dia, numa chinesíssima operação de ajeitar fio por fio, distribuir camada sobre camada, como se aquilo obedecesse a um ritual dos mais sagrados para a salvação de sua alma.  Velho pimpão e conhecedor de mil mumunhas estava ali, e que Deus o mantenha sentado à sua mão direita só por isso, quando outras razões não houvesse.  Os anos iam passando, o reumatismo fazia progressos, a bronquite tabágica, mais do que a tosse, lhe arrancava guinchos.  Mas quem disse que ele se conformava em entregar o bastão?  A todo instante corrigia o andar, para não imaginarem que estava ficando trôpego.  Aos oitenta anos escandalizou os filhos, quando alguém lhes foi contar que ele era cobrador de uma farmácia".

 

   A surpreendente revelação de que o velho arranjara aquele "bico" causou um tremendo furdúncio no seio da numerosa família.  O patriarca, na realidade, não tinha a mínima necessidade de tão penoso trabalho, andar atrás de devedores, pois nada lhe faltava; recebia dos filhos pontuais e agradecidas mesadas para passeios, charutos, pequenas despesas. Os familiares, de fala barulhenta, pródigas gesticulações, exalando um DNA característico do gênero italiano, armaram uma confusão das mais dramáticas. Contudo, o objetivo do avô era bastante saudável, altamente digno de nossa profunda admiração, calorosos aplausos e muita reverência.  Mas, deixemos ao sensato Mario Lago a revelação da necessidade daquele trabalho como cobrador de farmácia:

 

   "As comissões das cobranças, como ficou esclarecido mais tarde, e serviu de motivo para um escândalo ainda muito maior, iam todas para uma mulata pródiga de carnes e especialidades. E com que candura divina ele se justificava diante dos traumatizados 'francamente, papai!' repetidos incansavelmente pelos filhos:  - Vocês vivem por viver, figli miei.  Não conhecem da missa a metade.  Mulata é capaz de levantar qualquer defunto... e eu ainda estou respirando, grazzia a Dio".

 

   Agora, imaginemos avô e neto rolando pelo Centro do Rio, tagarelando sem parar, atraídos pela beleza do Teatro Municipal, a imponência da Biblioteca Nacional e do Museu de Belas-Artes; a fascinante presença do magnífico Palácio Monroe, tudo parecido com Paris.  Eis outro relato do genial Mario Lago sobre os locais onde hoje está a Cinelândia, e perceba o leitor que o esperto avô já havia ganho um pitoresco apelido:

 

   "Em 1919 a atual Praça Floriano ganhava ajardinamento novo e constituía nosso passeio predileto.  Ali passávamos horas esquecidas.  O barbicha - assim os trabalhadores o chamavam, forçando intimidade e lhe dispensando carinho e paciência de netos - se deslocava de um lado para outro, indagando sobre o andamento do serviço e até dando opiniões, como se tivesse alguma responsabilidade em tudo aquilo.

 

   Do antigo Convento da Ajuda, construído em fins do século XVII, na área hoje ocupada pela Cinelândia, havia em 1919 apenas um muro.  No terreno cercado por esse muro eram realizadas exposições de animais e flores.  Nada mais restava do antigo Seminário, construído no terreno ao lado do convento, doado pelas freiras, e demolido no final do século passado".

 

   A sintonia entre avô e neto era tanta, e tantas as estripulias da dupla, que os pais do menino falavam: "Deus os fez e o diabo os juntou".  Por influência do capeta, o barbicha falava ao neto dos rumores que circulavam na cidade em torno da demolição do convento, a descoberta de um túnel secreto que ligava o mosteiro feminino ao seminário.  As narrativas do velho Croccia eram em apoio às suposições (altamente pecaminosas...) e vinham com detalhes, inflexões de voz e sonorizações.  Um horror !...

 

   Mario Lago também conta episódios do fim de um marco histórico da cidade, assistidos, ao vivo, pela irrequieta dupla:

 

   "A demolição do Morro do Castelo foi um dos momentos mais gloriosos para o velho Croccia. Da Europa tinham sido importadas máquinas moderníssimas, destinadas a apressar a conclusão das obras. Aproximavam-se as comemorações do 1º Centenário da Independência, e a cidade deveria parecer um brinco aos olhos das delegações estrangeiras que viriam participar dos festejos. Todos os domingos lá íamos, eu e o barbicha, admirar as maravilhas do progresso, num passeio que acabou se tornando o grande divertimento dos cariocas pobres. Quem mais não queria ver as esguichadas violentíssimas que saíam das tais máquinas e iam arrastando terra e pedra, fazendo num só dia o que outros engenhos levariam semanas, talvez meses. O subúrbio se despejava por inteiro nas redondezas do morro. Vinham caravanas de Estados mais próximos para constatar que nada como o Rio para saber fazer as coisas, e por isso era a capital da República. 

 

   Ao ruído infernal da maquinaria se misturava o caos das discussões.  Por toda parte se formavam grupos atrapalhando os operários, dificultando o bom andamento do serviço. Havia quem aprovasse a medida, pois o progresso justificava tudo, e já era tempo, mesmo, de extirpar do centro da cidade aquele covil de meliantes (não sei porque, mas os moralistas adoram usar palavras que ninguém emprega nem sabe).  Outros eram totalmente contrários à medida.  Aquilo era uma sangria nos cofres públicos, obra que não precisava ser feita, só queriam encher os olhos dos estrangeiros e dar a impressão de sermos um país muito rico.  De mais a mais, que sacrilégio estavam cometendo.  Demolir o lugar escolhido por Mem de Sá para fundar a cidade! ".

 

   Croccia era ardoroso defensor do modernismo e berrava de entusiasmo ante os potentes jatos d'água que derretiam o morro.  Às opiniões contrárias, o velho respondia de forma exaltada; os ânimos ferviam e, várias vezes, a porrada comia solta.  Ninguém jamais morreu, mas houve a necessidade de socorros médicos, prestados pela Assistência Pública, e a condução dos brigões ao xilindró.  Na verdade, as únicas coisas que acalmavam, por completo, o turbulento Croccia eram os braços e os cafunés da tal mulata, dos momentos de amor dos quais os dois se deliciavam, num discreto e bem arrumado quartinho na Rua do Lavradio.  O tempo correu, o velho foi para jardins celestes, onde de forma amena, respeitosa, tem trocado idéias com Jorge, Sebastião, Benedito, Genaro e outros santos gloriosos.

 

   O neto, pleno de talentos e genialidades tornou-se celebridade nacional, compositor, poeta, escritor, ator, radialista, teatrólogo, dono de luminosa intelectualidade.  Jamais abdicou de suas convicções marxistas-leninistas, apesar das pressões múltiplas e variadas perseguições, até prisões, a primeira aos 22 anos.  Tudo iniciado quando a família descobriu que ele era leitor do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, O Estado e a Revolução, de Lenine, e outros livros do gênero.  Mario Lago conta o fuzuê que explodiu dentro de casa:

 

   "Política era assunto considerado só do entendimento dos doutores, estando, portanto, fora da cogitação de todos, já que em nossa família não existiam bacharéis em leis.  Mas os nomes dos autores daqueles livros até minha mãe sabia de cor.  Frequentavam as manchetes de jornais e revistas, apontados com ódio e nojo como responsáveis  por sanguinolentos banquetes onde criancinhas eram deglutidas al primo canto e moças desvirginadas ao vinagrete. (...)  O estarrecimento materno foi ganhando corpo na descompostura comedida do pai, acabando por explodir em escândalo para além-quarteirão na voz da avó, o que representou um toque de rebate para os demais membros da sagrada família.  Em pouco tempo nossa casa era invadida pelos parentes moradores nas proximidades, e tinha início o mutirão de argumentos capazes de me trazerem de volta aos sãos princípios norteadores do comportamento tribal através dos tempos".

 

   O tempo continuou a rolar, o jovem marxista, cada vez mais famoso e ídolo público, passou a frequentar as rodas do Café Nice, mas com o fim do estabelecimento integrou-se à revoada que foi pousar no Amarelinho.  Para Mario Lago o novo ninho não era novidade, sempre fez parte de suas rolanças, fossem políticas, boêmias, intelectuais ou lazer.  No livro que serviu de inspiração a esta matéria (lançado em 1976 pela Editora Civilização Brasileira) o autor conta que em 1936, a convite de Oduvaldo Viana, foi trabalhar em São Paulo, na Rádio Panamericana, e por lá ficou, conforme o contrato, um ano.  Ele revela:

 

   "Um  ano  sem a Cinelândia. Turma boa e lugar sempre fervendo. Quatro teatros funcionavam naquelas paragens, mantendo permanentemente cheios os cafés e as esquinas onde a gente fazia roda e papeava e se distraía: o Glória, o Regina, o Rival e o Serrador.  Cinelândia que se espalhava pelo Amarelinho, Douradinho, Spaghetillândia, Café Angrense, A Brasileira, Livraria Vítor, em cujas vitrinas o Pandiá Pires sonhava ver um dia expostas as cabeças de muitos figurões que andavam empulhando a opinião pública".

 

   Ele viveu neste nosso vale de lágrimas ao longo de quase 91 anos, dando-nos alegrias e contentamentos. Em 2011, ocorrerá o centenário do seu nascimento, que bem merece ser comemorado no lugar certo: a Cinelândia!

"FLAMENGO, FLAMENGO, TUA GLÓRIA É LUTAR"

 

   O título acima é do hino oficial do rubro-negro, cuja autoria muitos confundem atribuindo-a a Lamartine Babo, quando, na verdade, o autor é Paulo de Magalhães, escritor, teatrólogo, radialista, apresentador de TV e esportista, que se habituou a frequentar as rodas do Amarelinho. Ao escrever o livro "Colóquio Unilateralmente Sentimental" o poeta Manuel Bandeira prestou ao amigo esta singular homenagem:

 

   "Confesso em público e raso que um dos homens que mais tenho invejado na minha vida é Paulo de Magalhães. Não porque ele possua condecorações da França, Itália, Portugal, Espanha, Bélgica e Peru. Não porque ele tenha ganho a Medalha de Ouro da Televisão Tupi (programa Ídolos de Todos os Tempos) como autor do Hino do Flamengo e antigo desportista pelo clube. Invejo-o por outras inumeráveis coisas. Por exemplo: ser autor de 107 peças encenadas, outras tantas escritas e um sem-conta delas imaginadas. A fecundidade teatral de Paulo deslumbra, maravilha a minha total privação de bossa ficcionista. Invejo-o pela sua esplêndida verve de cabotino confesso, imprevisível e insuperável (os cabotinos que abomino são os fingidos, os sonsos, os que temperam o picante da imodéstia com o molho hipócrita da falsa modéstia, os que querem passar por violetinhas muito satisfeitas com o seu retiro de sombras, quando na realidade o que eles desejam é, como os girassóis, todo o sol para si)".

 

   A homenagem do poeta prossegue através de recordações de episódios os mais movimentados da juventude, principalmente amorosa, do teatrólogo, que conheci em 1967, um ano antes da morte de Manuel Bandeira. Nosso primeiro encontro foi no 11º andar da Associação Brasileira de Imprensa, e a partir daí ficamos amigos. Jogando sinuca, irreverente, espaçoso, charutão fumegando no canto da boca, sempre falando de suas glórias e do Flamengo, dava asas ao simpático cabotinismo, empregando quase sempre a primeira pessoa do singular. Certa vez pediu minha opinião sobre o emprego do "plural de modéstia", isto é: o uso do pronome pessoal "nós", em lugar do "eu". Respondi que esse plural tinha certas sutilezas, dependia de subjetividades. Contudo, disse ao teatrólogo que ele tinha lá suas razões, na frenética preferência pela primeira pessoa do singular. E até observei que ninguém usa o plural de modéstia para contar dificuldades pessoais; se a cabeça dói, ninguém diz "estamos com dor de cabeça"; se o sapato aperta, ninguém diz "nosso sapato está nos apertando", e por aí vai. Ora, se ninguém, normalmente, divide dissabores, por que dividir êxitos?

 

   Diante do meu argumento, Paulo olhou-me intensamente e, pleno de satisfação, berrou com sua possante voz: "Você foi cintilante. Perfeito!". O grito estrondou por todo o 11º andar da ABI. Para dificultar o uso do plural de modéstia, ele também é conhecido como "plural majestático", coisa herdada dos tempos em que o pronome "nós" era bastante usado pelos monarcas de Portugal para estender ao povo a grandeza do poder real. Tentavam, malandramente, passar a idéia de que os reis interpretavam a vontade de toda a nação e em nome dela tomavam suas decisões. Tudo conversa fiada!

 

   Tardes inteiras na ABI não eram suficientes para as fascinantes narrativas daquele que foi presidente, várias vezes, da Casa dos Artistas, grande amigo de Juscelino Kubitschek, pioneiro da TV em Brasília, descobridor de talentos (entre muitos, orgulhava-se de ter descoberto Fernanda Montenegro). Com desenvoltura e gestos largos, contava seu retumbante êxito na França, onde, ao derredor de 1950, havia trabalhado na Television Française, ofuscando a Torre Eifel, o Arco do Triunfo e o Museu do Louvre.

 

   Da extensa autobiografia (onde não há plural de modéstia) de Paulo de Magalhães, transcrevo breves trechos:

 

   "O ano de 1927 foi um dos mais movimentados da minha vida. Além do Primeiro Congresso Internacional de Teatro, ao qual compareci como delegado do Brasil, ganhei o Tour da Côte d'Azur, em motocicleta, chegando em segundo lugar o Marquês de Ravelles (primo de Alfonso XIII, Rei de Espanha) e também arrebatei o Primeiro Prêmio de Elegância Masculina, em Nice. Em junho embarquei para Paris no Massília a fim de tomar parte no congresso acima referido. Substituía Bastos Tigre que estava licenciado da presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Eu, como vice, assumi o cargo de delegado brasileiro. A reunião foi no Palais Royal, sob a presidência de Firmin Gemier, fazendo parte da mesa diretora Tristan Bernard e Jean Jacques Bernard, sendo Presidente de Honra, o Ministro Édouard Herriot.

 

   França, Inglaterra, Alemanha, Hungria, Grécia, Itália, Rumânia, Bélgica, Espanha e Suécia mandaram ao congresso delegações numerosas. Eu, representando os autores e artistas brasileiros, fiz parte de várias comissões. Na foto da instalação do evento, na Sala dos Espelhos, no Palais Royal, figuro ao lado de Tristan Bernard de quem fiquei cordial amigo. No banquete de encerramento, presidido por Herriot, com a presença de todos os embaixadores dos países que se apresentaram no conclave, fui orador das delegações latino-americanas. Falei de improviso, em francês".

 

   Tive oportunidade de ver um bem cuidado álbum que Paulo de Magalhães me apresentou, com fotos e recortes da imprensa francesa. Realmente, o representante do Brasil causou profunda emoção, encheu de orgulho o embaixador Souza Dantas e foi distinguido com especiais referências feitas por Édouard Herriot.

 

   Certo dia, medi a dimensão do amor do teatrólogo pelo Flamengo: durante o governo Médici (1969 - 1974) houve um evento, em homenagem ao presidente, para o qual foram convidados nomes de prestígio na ABI, entre eles nosso adorável cabotino. A recusa ao convite foi contundente, pois naquela tarde ele iria ver o treino do rubro-negro na Gávea, missão que ele disse "ser sacratíssima e que estava acima de qualquer coisa".

 

   Vitórias do rubro-negro eram comemoradas no Amarelinho em meio aos encantos da Cinelândia, quando ele, voz trovejante, gestos largos, qual vibrante canto alexandrino, proclamava as glórias do clube do seu enorme coração. Uma das suas maiores alegrias era no carnaval, quando as orquestras nos bailes da folia marcavam a virada de sambas e marchinhas entoando "Flamengo, Flamengo, Tua Glória é Lutar / Flamengo, Flamengo, Campeão de Terra e Mar". Aí acontecia um curioso fenômeno: torcedores e torcedoras de clubes de altíssima rivalidade com o rubro-negro pulavam alegremente ignorando o "sacrilégio" que cometiam. Abordei o assunto, em crônica que escrevi no jornal "O Dia", em 21 de fevereiro de 1982, um domingo de carnaval.

 

   Materialista convicto, Paulo de Magalhães embora sabendo os rumos fatais da doença que o mataria (em 8-11-1972), recusava firmemente qualquer assistência que não viesse da ciência médica dos homens. Rejeitava qualquer tema reencarnacionista e proclamava que a morte era uma libertação. Com 72 anos dizia da felicidade do seu pai que morrera aos 50.

O ADEUS AO "JORNAL DO BRASIL"

 

   Ao término do século 19, os jornais do Rio, e de todo o país, permaneciam no estilo dos tempos do Império: de 4 a 8 páginas, com destaque para um editorial (o chamado "artigo de fundo") com linguagem empolada, esmerada em exaltação aos interesses do dono do jornal, ou contundentes críticas àqueles que contrariavam tais interesses. A paginação era acanhada, colunas rigorosamente alinhadas, raríssimas ilustrações, ausência de manchetes, títulos de indigente criatividade. Tudo melancolicamente atrasado em comparação com a imprensa dos centros europeus.

 

   O noticiário, em geral, misturava-se aos "despachos telegráphicos do Estrangeiro", às informações burocráticas de repartições do governo e aos acontecimentos que envolvessem gente da elite, figurões de variados matizes, principalmente os "abastados negociantes" e suas "bem formadas e distinctas famílias", moradores de espaçosos palacetes. As notas sociais caprichavam em respeitosas referências às matriarcas e às "gentis e mui prendadas senhorinhas, a fina flor da nossa melhor sociedade". Os passeios das elites pela Rua do Ouvidor também mereciam destaque pela "elegância, requinte e bom gosto" que exibiam. Contudo, décadas depois, o escritor Luiz Edmundo fazia os seguintes comentários sobre as senhoras da alta sociedade e suas filhas:

 

   "As senhoras vestem saias compridas, amplas, cheias de subsaias, sungadas a mão; mostram cinturinhas de marimbondo, os traseiros em tufo, ressaltados por colêtes de barbatana de ferro, que descem quase um palmo abaixo do umbigo. Tôdas de cabelos longos, enrodilhados no alto da cabeça e sôbre os quais equilibra-se um chapéu que, para não fugir com o vento, fica prêso a um grampo de metal em forma de gládio curto, com um cabozinho enfeitado de madrepérola ou pedras de fantasia. Usam, como fazendas, o surah, o faille, o chamalote, o tafetá e o merinó; calçam botinas de cano alto, de abotoar ou prêsas a cordão, o infalível leque de sêda ou gaze na mão, sempre muito bem-enluvada.

 

   Não há pintura de olhos, de lábios, nem de rosto. As mulheres cariocas são figuras de marfim ou cêra, visões maceradas evadidas de um cemitério. Quando passam em bandos lembram uma procissão de cadáveres. Diz-se pelas igrejas que é pecado pintar o rosto, que Nossa Senhora não se pintava".

 

   É claro que o escritor não teria guarida nos jornais da alvorada do século 20, mas se conseguisse publicar suas impressões, acima fielmente transcritas, seria imediatamente posto no olho da rua. Sem perdão.

 

   O noticiário político era, quase sempre, tendencioso, favorável ao partido dos dirigentes do jornal. Fatos policiais tinham seus espaços, enquanto a movimentação de navios (chamados vapores) no cais do porto merecia detalhadas informações, notadamente os de passageiros. Mas, foi então que o "Jornal do Brasil", fundado em 1891, resolveu inovar. Seu fundador, Rodolfo Epifânio de Sousa Dantas (1854 - 1901), baiano de Salvador, formado pela Faculdade de Direito do Recife, foi diretor do "Diário da Bahia", membro do Partido Liberal e Ministro do Império; apreciado orador, muito dedicou-se ao desenvolvimento da Educação no país. Dirigido pelos irmãos Fernando e Cândido Mendes, republicano e monarquista, respectivamente, o JB tinha redação e oficinas na Rua Gonçalves Dias, num arejado prédio de 2 andares.

 

   Em 1921 havia formado uma equipe respeitável: Artur Costa, secretário; Agenor de Carvoliva, redator; Afonso Celso, Osório Duque Estrada, Batista Coelho, Paulo Vidal, Souza Valente, Martim Francisco, Feliciano Prazeres, entre outros de um naipe altamente capaz, do qual faziam parte os operários gráficos, todos contribuindo para o sucesso do jornal. Também por lá ingressaram Julião Machado, Raul Pederneiras, Artur Lucas e mais alguns artistas da caricatura que os demais jornais resistiam em acolher, embora obtivessem, aqueles exímios desenhistas, sucesso e agrado popular em revistas e periódicos que valorizavam o humor. Foi uma espetacular renovação, culminada com a conquista da sede própria, magnífico prédio de vários andares na recém-inaugurada Avenida Central.

 

   Em 1918, o JB é adquirido por Pereira Carneiro e passa a se consagrar como o jornal de pequenos anúncios (os classificados). Sempre na vanguarda do progresso, o matutino, ao final dos anos 50, sob a direção da condessa Pereira Carneiro, empreendeu mais uma renovação: saem os classificados da 1ª página, surgem o Caderno B, a Revista de Domingo, além da Agência JB, com seus correspondentes especiais espalhados pelas grandes cidades dos cinco continentes. Também se transfere para uma nova sede própria, na Avenida Brasil, enorme edificação que se tornou referência para os cariocas.

 

   Mas, com o passar do tempo, o JB sofreu contínuas dificuldades, causadas por variados fatores, entrou em declínio e deixou de circular em 31 de agosto de 2010, embora permaneça vivo na internet (www.jbonline.com.br). O destino do bravo jornal foi o mesmo de dezenas de tradicionais órgãos de divulgação do Rio. Todavia, o término do JB, em papel, provocou um fato inédito na imprensa mundial, pois não há notícia de que, em todo o mundo, qualquer periódico, no dia de sua supressão, tenha reunido numerosas pessoas para assinalar o acontecimento. E como caracterizar tal acontecimento? Manifestação de pesar? Movimento de protesto? Diria eu que o espírito carioca transformou-o numa homenagem com muito de gratidão aos 119 anos de existência de um jornal tão significativo para a cultura do Rio e do Brasil.

 

   O local escolhido pelos bem inspirados promotores do sentimental adeus foi a Cinelândia, tendo o Amarelinho como palco principal, o que enriquece, ainda mais, a história do estabelecimento. Tão admirável despedida foi comentada por variados veículos de informação, e aqui destaco o realce que Ricardo Boechat, influente jornalista, radialista e apresentador de TV deu ao evento, divulgando-o, com muito carinho, na Rádio Band News, em horários nacional e local.

 

   Certamente, a gente iluminada que lá compareceu esteve envolta nas intangíveis energias positivas daqueles que já se foram para outras esferas do Universo, mas que ao longo de um século e duas décadas deram magnitude ao "Jornal do Brasil".

JOÃO HAVELANGE - ONTEM, HOJE E AMANHÃ

 

   Quinhentos anos antes de Cristo, o pensador grego Heráclito, considerado o Pai da Filosofia, fazia esta reflexão:

 

   “É uma mesma coisa ser vivo ou ser morto; desperto ou adormecido; jovem ou velho; pois essas fases se transformam umas nas outras e são, de novo, transformadas”.

 

   Tal pensamento muito era cultivado pelo imperador Augusto, o mais esclarecido dos césares romanos, que sabia se cercar de literatos, filósofos, historiadores, artistas e construtores, entre eles Vergílio, Horácio, Tito Lívio, Ovídio, Propércio e Vitrúvio.

 

   Nesta página "Gente luminosa - Oscar Niemeyer e muito mais", há evocações, um desfile de nomes que moldaram o passado, fazem parte do presente e vão se projetar no futuro de todos nós.  De olho no tema, pedi a João Havelange uma especial reflexão sobre o passado da Cinelândia, no que fui prontamente atendido em setembro de 2010:

 

   "Retornar o meu pensamento à Cinelândia de minha juventude é recordar o 'Amarelinho' que, naquela época, era considerado de grande importância para as reuniões culturais de nossa juventude.

 

   É de nosso dever, lembrando esse passado tão importante na nossa formação, mencionar e reviver, permanentemente, o que representou de valor cultural e ético esse local, pelos exemplos que apresentou e como tal será eternamente lembrado e respeitado.

 

   Hoje ainda está a representar o seu papel no cenário tão aprazível que continua a ser a nossa Cinelândia, naturalmente mais adequada aos tempos atuais".

 

   Na juventude de Havelange há um fato marcante, sua participação, com apenas 20 anos, nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936,  credenciado por vitórias no âmbito sul-americano, em provas de 400, 800 e 1.500 metros, nado livre, além do revezamento 4 x 200.  Na capital alemã, esteve ao lado de astros da natação mundial, entre eles o húngaro Csik, o norte-americano Jack Medica, os japoneses Terada e Hamuro, além de duas estrelas holandesas que encantavam o mundo, Hendrika Mastrenboeck e Nida Senff.

 

   Em 1952, nas Olimpíadas de Helsinki, lá estava Havelange integrando a equipe de polo aquático do Brasil, em mais um episódio de sua vida esportiva como atleta e dirigente, que o transformou num Cidadão do Universo, mas sempre preservando seus sentimentos de brasilidade.

 

   Quando Havelange nos exorta a lembrar o passado, faz-me refletir sobre Georges Bernanos (personagem mencionado em capítulo anterior desta série) e entender o sofrimento do célebre escritor francês, cujo espírito dilacerava-se diante das fulminantes vitórias nazistas ao início da 2ª Guerra Mundial.  Buscava ele lenitivo na contemplação da Cinelândia e nos seus comentários escritos nas mesas do Amarelinho, divulgados pela BBC de Londres.  Ferrenho adversário do hitlerismo, Bernanos padeceu um doloroso calvário a partir da queda da Polônia em setembro de 1939; um país despreparado para enfrentar ablitzkrieg alemã, derrotado em menos de um mês, apesar do heroísmo simbolizado pela cavalaria em combate suicida com os blindados germânicos, num cenário assim descrito pelo historiador Hanson Baldwin, que se desenrolou no chamado Corredor Polonês, na área de Dantzig (atual Gdansk):

 

   "No disputado Corredor, de defesa impossível, duas divisões de infantaria e a Brigada de Cavalaria Pomorze tentaram manter a posse do terreno; foram isoladas pelo XIX Corpo do 4º Exército alemão, que progredira pela base do Corredor até a Prússia Oriental.  No dia 2 de setembro - dois dias após o início da guerra - as unidades polonesas estavam praticamente dizimadas.  Os magníficos cavaleiros, com as lanças em posição de carga e couro das selas rangendo, morriam junto com suas montarias ainda ouvindo o tropel do galope.  Homens, animais e coragem atiravam-se contra os carros de combate e tiros de canhão, mas não chegava a haver luta".

 

   A via-crúcis de Bernanos prosseguiu com a queda da Holanda e da Bélgica, esta que em maio de 1940 viu suas defesas no Canal Albert e a fortaleza Eben Emael serem neutralizadas, o que provocou o rápido isolamento de 22 divisões do exército comandado pelo rei Leopoldo III, levando-o à rendição incondicional.  Já atingido nos seus sentimentos gauleses, Bernanos sofreu mais uma profunda lancetada com a rápida derrocada da França e a humilhante capitulação em 22 de junho de 1940.

 

   Em meio a tantas tragédias, as considerações de Bernanos escritas no Amarelinho eram traduzidas em vários idiomas e difundidas pelas poderosas ondas curtas da emissora britânica, tornando-se úteis componentes para a formação dos movimentos de resistência nos países que estavam sob ocupação nazista. 

 

   Na sua santíssima indignação, Bernanos mostrava profunda repulsa a uma nefasta trindade de traidores de suas pátrias: Vidkun Quisling (Noruega), Léon Degrelle (Bélgica) e Pierre Laval (França).  O norueguês e o francês foram julgados e executados logo após o término da guerra, mas Degrelle fugiu para a Espanha, colocou-se sob a proteção do ditador Francisco Franco e conseguiu ser naturalizado cidadão espanhol, o que impediu sua extradição.

 

   Oscar Wilde, escritor inglês de origem irlandesa, autor de obras famosas na literatura mundial, tais como "A Balada do Cárcere de Reading", "O Retrato de Dorian Gray" e "De Profundis", sentenciava:

 

   "Aquele para quem o presente é a única coisa presente, não conhece nada da idade em que vive.  Para compreender o século décimo nono, é necessário compreender todos os séculos que o precederam e os que hão de vir".

 

   A sentença de Wilde, proferida no século 19, está de acordo com o resgate - que aqui vem sendo feito - da memória da Cinelândia, iniciativa tão bem compreendida por João Havelange.  Quando Graham Bell criou em 1876 um aparelho para auxiliar a audição de surdos dava início à telefonia, que vem se desenvolvendo há 134 anos.  Foi lá, em Massachusetts, numa modesta escola preparatória para professores de surdos-mudos, que tudo começou...

 

   Atualmente, vivemos o tempo dos celulares, de tantas múltiplas funções, mas que -  no futuro - ultrapassados por novas tecnologias não poderão merecer desprezo ou comentários risíveis daqueles que não sabem compreender o indissolúvel entrelaçamento do ontem, do hoje e do amanhã.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - LIÇÕES DE VIDA

 

   As crônicas dominicais do "Futebol Pitoresco", escritas por João Antero de Carvalho, publicadas no jornal "O Dia" ao longo de quase vinte anos, tiveram como tema principal, em 31 de julho e 7 de agosto de 1983, o poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade, sobrando gentis comentários sobre as musas Polímnia, Calíope e Erato, etéreas filhas de Zeus, inspiradoras dos diversos tipos de poesia. Como desenhista daquela seção jornalística, retratei Drummond recostado numa coluna grega, acompanhado da suave Polímnia. O poeta, encantado com o desenho, telefonou para o Antero e a dupla fez esta apreciação: "Os traços tênues, num quase diáfano cenário mitológico, a musa de corpo e alma envoltos em tristeza formaram uma concepção genial". Tal elogio, publicado em "O Dia" (7-8-83), deixou-me tão envaidecido que me senti à altura de Leonardo da Vinci...

 

   Neste link, no capítulo "A doce nostalgia de Joel Silveira", há referência ao início da carreira literária de Drummond, sua integração à turma de jornalistas do periódico "Dom Casmurro", dirigido por Brício de Abreu, que costumava se reunir no Amarelinho. Naquela época, o poeta também era diretor de redação do jornal "Tribuna Popular", fundado em 1945 como órgão oficial do PCB, feito por gente de alto quilate, Rubem Braga, Samuel Wainer, Moacir Werneck de Castro, João Saldanha, Mario Lago, Oscar Niemeyer e tantos outros expoentes da cultura brasileira, todos unidos em torno de um projeto de justiça social.

 

   O mineiro Drummond possuía fina sensibilidade, sempre apreensivo e inconformado com os perniciosos e pertinazes contrastes sociais do Brasil, que o faziam sofrer desde os tempos escolares no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo. A dimensão do poeta, com obras traduzidas para o espanhol, francês, inglês, alemão, sueco, tcheco, pode ser avaliada na preciosa obra "Pensamentos Selecionados", do jurista e escritor Benedito Calheiros Bomfim, que se tornou uma das minhas leituras prediletas. As palavras de Drummond servem-nos como lições de vida:

 

   "A guerra assume tantos disfarces que às vezes é chamada de paz".

 

   "Escrever um diário é cultivar a ilusão de que o tempo se deterá em suas páginas".

 

   "A alma, prisioneira do corpo, vive em guerra com seu carcereiro".

 

   "Autor de obras-primas, o homem é incapaz de fazer um pé de couve".

 

   "A sociedade estabelece requintes de vestuário e de culinária que dispensam os de espírito".

 

   "Testamento: forma de saborear a morte continuando vivo".

 

   "No Brasil, quem compra livro é raridade, e quem fica com livros dos outros é legião".

 

   "A amizade é um meio de nos separarmos da humanidade cultivando algumas pessoas".

 

   "A flor não nasceu para decorar a casa, embora o morador pense o contrário".

 

   "Virgindade: atributo que a natureza concebeu contra o seu próprio interesse".

 

   "Viver em sociedade requer instinto de formiga, dentes de leão e habilidade de camaleão".

 

   "A maior ambição dos inovadores é que suas inovações se tornem tradicionais".

 

   "Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada".

 

   Tenho uma amiga, das mais admiráveis, Myriam de Filippis, italiana de Nápoles, chegada ao Brasil em 1971 e que se tornou excelente conhecedora do nosso idioma, craque em gramática normativa, tradutora, além de professora de italiano. Uma intensa e profícua vida profissional que ela, em recente mensagem a mim enviada assim expõe:

 

   "O meu problema não é trabalhar. O meu problema é não saber limitar o meu trabalho. Mas esta incapacidade se deve principalmente ao fato de eu considerar uma dádiva poder ainda trabalhar na minha idade, e não me parece inteligente recusar trabalho quando ainda há quem me oferece trabalho. Eu sei que logo, logo, ninguém vai me procurar mais por trabalho algum, então me sinto na obrigação de colher todas as oportunidades que se me apresentarem".

 

   A noção de Myriam sobre o aproveitamento do tempo lembra-me esta lição de Drummond:

 

   "A cada dia que vivo, mais me convenço que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade".

O PEIXE ASSADO DE PORTINARI

 

   A vitória da URSS na 2ª Guerra Mundial sobre o nazismo provocou admiração dos países aliados; o heroísmo do povo soviético emocionou a todos, atenuando o antimarxismo que ocorria desde a consolidação da Revolução Russa de 1917. Naquele período de aliança contra o hitlerismo, o cinema de Hollywood lançou, em meio a uma festiva propaganda, o filme "A Estrela Vermelha", com um dos astros mais famosos daqueles tempos, o galã Robert Taylor, interpretando um destemido guerrilheiro russo em luta contra o invasor nazista.

 

   Mas, com  o término do conflito, a aliança fragilizou-se e surgiram rivalidades entre, principalmente, americanos e soviéticos (a chamada "guerra fria") e o comunismo passou, nos países ocidentais, a ser intensamente combatido. No Brasil houve até uma antecipação do macartismo (veja neste link o texto sob o título "O poeta e dois dos seus amores"), quando a esquerda passou, a partir de 1945, a ser hostilizada. Entre os movimentos antimarxistas estavam a Cruzada Brasileira Anticomunista (do almirante Pena Boto), o Clube da Lanterna e a Cruzada Democrática.

 

   O PCB, fundado em 1922, que havia sido posto na ilegalidade em 1937, voltou em 1945, porém teve seu registro cancelado em 1947. No curto período de legalidade concorreu às eleições presidenciais e parlamentares de 1945, e seu candidato a senador pelo Rio de Janeiro (então Distrito Federal) era Cândido Portinari, que foi derrotado por pequena margem de votos, consequência da acirrada campanha que sofreu, ao lado de seus companheiros de partido apontados como "perigosos agentes do bolchevismo, pagos pelo ouro de Moscou". Nosso artista, profundamente desgostoso com o desenfreado anticomunismo vigente no Brasil, foi com a família para o Uruguai, de lá voltando em 1951.

 

   Contudo, a arte de Portinari venceu as intolerâncias e atingiu maior consagração com seus murais "Guerra e Paz", entronizados na sede da ONU, em Nova York, obras monumentais que, provisoriamente, retornaram ao Brasil para restauro, exposição em vários Estados e outros países, até que o edifício da ONU seja completamente reformado. Esses murais estiveram expostos no Teatro Municipal entre 22 de dezembro de 2010 e 6 de janeiro de 2011, atraindo multidões ávidas em contemplar tão impressionantes criações do gênero humano.

 

   Portinari morreu em 1962, pouco depois de completar 58 anos de idade, e de suas muitas evocações deve ser ressaltado: - apesar das intolerâncias que o fizeram padecer, ele foi um admirável expoente da arte sacra. Ao longo de sua vida terrena, pintou, em 1942, temas bíblicos para a sede da Rádio Difusora de São Paulo; painel em azulejo sobre a vida de São Francisco e cenas da Via Sacra (óleo sobre madeira) na igreja da Pampulha, Belo Horizonte, 1944 - 1946; o enorme mural "Primeira Missa no Brasil", no edifício sede do Banco Boavista, no Rio, 1948 - 1949; uma série de murais para a igreja de Batatais, SP, 1953; tudo dando curso ininterrupto a uma arte que o sensibilizou, ainda menino, quando auxiliava na pintura e decoração da igreja de Brodósqui, sua pequena cidade natal no interior paulista.

 

   Em suas permanências no Rio, cidade que o maravilhava desde sua chegada, aos 15 anos, para estudar na Escola Nacional de Belas Artes, Portinari tinha especial predileção pelo Amarelinho, que nas décadas de 1940 e 1950 oferecia entre suas atrações um prato que - conforme revela o pesquisador, historiador e gastrônomo Breno Lerner - deliciava o pintor, o peixe assado com molho de mandioca.

VINICIUS DE MORAES – VERSOS LIVRES, VERSOS SOLTOS

 

   Neste menu , sob o título “Protofonia” da Orquestra Sinfônica Brasileira, há uma reprodução de texto do escritor JG de Araújo Jorge que recorda poetas, músicos e intelectuais frequentadores do Amarelinho, entre eles Vinicius de Moraes, um carioca nascido no Jardim Botânico em 1913. Na Escola Afrânio Peixoto, no curso primário, Vinicius já se revelava um exímio namorador, saudável atividade que se estendeu ao longo do secundário, no Colégio Santo Inácio, e por toda a sua vida de variados e renovados amores, tudo envolto em música e poesia.

 

   Foi na Faculdade de Direito do Catete – o saudoso templo de formação de consciências cívicas e lúcida participação na vida política do país – que Vinicius moldou os rumos de sua trajetória na literatura, no jornalismo, no cinema (como roteirista) e na carreira diplomática. Sua biografia é bastante conhecida, mas aqui se deve realçar a amizade com o poeta chileno Pablo Neruda, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1971.

 

   Naqueles tempos de fascínio da Cinelândia, a presença de Vinicius, num ambiente tão propício, trazia seu culto à poesia do chileno, à liberdade de criar dentro de um vasto universo literário assinalado por mais de 40 modalidades de versos, mas cujo número real é impossível fixar, pois não há critérios para impor limites à arte de conceber uma linguagem afetiva, marcada pela repetição de sons ou grupos sonoros semelhantes. Um desafio diante do qual  Neruda expunha seu pensamento:

 

   “Não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema; e, por minha vez, não deixarei impresso sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria”.

 

   Como se vê, no ideário de Neruda está a plena aceitação dos versos livres, os que não obedecem às exigências da métrica, tendo como único critério as pausas espontâneas da inspiração lírica; ou dos versos soltos, os que não se submetem à rigidez das rimas. Além da liberdade de criar, Neruda também nos dá pensamentos em torno da motivação e dos estilos de poemas:

 

   "Os deveres do poeta foram talvez sempre os mesmos na história. A honra da poesia foi sair à rua, foi tomar parte nesse e naquele combate. O poeta não se assustou quando o disseram insurgente. A poesia é uma insurreição. Não se ofende o poeta porque o chamam subversivo. A vida ultrapassa as estruturas e há novos códigos para a alma".

   "A vida e os livros, as viagens e a guerra, a bondade e a crueldade, a amizade e a ameaça, fizeram mudar cem vezes o traje da minha poesia".

 

   E foi assim, livre e solto, que Vinicius louvou seus orixás através dos afrossambas, musicados por Baden Powell; sabendo, principalmente, transformar-se para permanecer na memória e no coração do seu povo.

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Texto: Murilo Brasil - www.murilobrasil.com.br

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